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sexta-feira, 30 de abril de 2010

fundamentos da democracia moderna

Os Fundamentos da Democracia:
Análise Crítica da Justificação Funcional
da Democracia por Hans Kelsen



Júlio Aguiar de Oliveira
Prof. Adjunto da PucMinas
julioaguiar@pucminas.br



Introdução

Em “Fundamentos da democracia” [1] , texto publicado no Brasil na primeira parte do volume intitulado “A Democracia”, Kelsen desenvolve, entre outros temas, o da relação entre democracia e religião, objeto de análise do presente estudo. Pretende-se, aqui, realizar uma crítica da crítica, na medida em que se busca trazer a exame o fundamento, não desenvolvido por Kelsen, de sua crítica às tentativas de se conferir uma justificação absoluta da democracia pela teologia cristã. Não se trata, é de se observar, de uma análise das específicas críticas kelsenianas às teses de Brunner, Niebuhr e Maritain tampouco de uma vindicação dessas mesmas teses, mas sim, como dito, da explicitação de um suposto subjacente ao conjunto do esforço crítico kelseniano.

I. O Exame da Base Filosófica da Democracia

Segundo Kelsen, o exame da base filosófica da democracia não deve objetivar constituir-se em uma justificação absoluta da democracia. Isto porque, uma reflexão filosófica, livre da metafísica e da religião, é incapaz de reconhecer um valor social qualquer à exclusão de outro. A única justificação da democracia que se pode permitir uma filosofia relativista, baseada na ciência (e não na metafísica ou na religião), é uma justificação funcional. Tal justificação deixa a decisão sobre o valor social a ser posto em prática a cargo dos indivíduos atuantes na realidade política. Nesse passo, a democracia encontra seu fundamento, funcional, apenas na hipótese de os indivíduos atuantes na realidade política entenderem serem a liberdade e a igualdade os valores que devem ser postos em prática. A democracia justifica-se, portanto, por ser, assim o entende Kelsen, a forma de governo mais funcionalmente ajustada a realizar os valores liberdade e igualdade. [2]

No entanto, em decorrência de falta de capacidade ou de disposição dos indivíduos para tomarem decisões relativas aos valores a serem implementados, aceitando, corajosamente, as conseqüências dessas escolhas livres, surgem teorias nas quais o peso de tais decisões é transferido para os ombros de uma autoridade religiosa [3]. Para Kelsen, a teologia cristã, ao oferecer uma justificação da democracia em termos não-relativistas, responde à pusilanimidade do homem moderno, dando-lhe o conforto de um fundamento aparentemente absoluto.

No texto em exame, interessa a Kelsen, a partir de uma análise crítica do pensamento teológico-democrático de Emil Brunner, Reinhold Niebuhr e Jacques Maritain, demonstrar o erro inerente a esses exercícios de fundamentação teológica absoluta da democracia no cristianismo, pois defende que: a) a teologia cristã só é capaz de justificar a democracia como valor relativo e b) inexiste uma relação essencial entre democracia e religião cristã. [4]

Ao que parece, Kelsen pretende demonstrar que, em sua covardia, o homem moderno, pensando abrigar-se sob o pálio de valores absolutos, apenas recusa-se a perceber o poder de sua própria escolha livre como constitutiva dos valores sob os quais realmente se abriga. No entanto, se o esforço crítico kelseniano se orienta para a demonstração do caráter essencialmente relativista da justificação, erroneamente pensada como absoluta, do valor da democracia pela teologia cristã (Brunner, Niebuhr e Maritain), o esforço deste breve artigo volta-se para a demonstração do caráter essencialmente absoluto da justificação, erroneamente pensada como relativista-funcional, do valor da democracia por Hans Kelsen.

II. O Caráter Absoluto da Justificação da Democracia em Kelsen

Kelsen afirma que a democracia é a forma de governo funcionalmente fundamentada caso os indivíduos atuantes na realidade política decidam pôr em prática os valores liberdade e igualdade. Porém, sustenta Kelsen, é impossível afirmar, com amparo na ciência, seja a democracia a melhor forma de governo, na medida em que existem outros valores, além da liberdade e da igualdade, aos quais a democracia não é capaz de promover com eficiência relativamente superior a de outras formas de governo. [5]

O problema interno da argumentação kelseniana encontra-se no fato de pressupor uma realidade política inicial composta por indivíduos livres e iguais, por cujas escolhas são eleitos, democraticamente, os valores e, em seguida, escolhida e justificada, pelo critério da adequação funcional, a forma de governo apropriada à concretização dos valores eleitos. Ora, é impossível adjudicar a escolha de valores a um conjunto de indivíduos sem se pressupor a liberdade e a igualdade dos indivíduos como valores que, antes de tudo, tornam exeqüível a própria possibilidade de escolha. Ou seja, se, como afirma Kelsen, os valores são escolhidos pelos indivíduos, esses indivíduos devem, de antemão, reconhecerem-se como indivíduos livres e iguais. Ora, a liberdade e a igualdade não são, portanto, valores decorrentes de uma escolha, mas sim os pressupostos de qualquer operação de escolha. Em outros termos, o que Kelsen sustenta é que, na hipótese de indivíduos livres e iguais escolherem democraticamente realizar os valores liberdade e igualdade, a democracia pode ser funcionalmente justificada por uma filosofia relativista do valor. Não há como deixar de perceber, neste ponto, que aquilo que a argumentação kelseniana encerra em sua circularidade é o individualismo enquanto valor absoluto. A democracia, nesse contexto, não pode ser pensada como um meio para a realização de valores entendidos como supremos nem sua justificação pode ser afirmada por um juízo condicional. Se a realidade política se compõe, ao menos em seu momento inicial, de indivíduos livres e iguais, que se impõem a responsabilidade de escolher democraticamente os valores sociais que constituirão seus objetivos, a liberdade e a igualdade não são valores entre outros, passíveis ou não de serem eleitos como valores a serem realizados por aquele específico conjunto de indivíduos, são valores absolutos, pois não pode haver indivíduos responsáveis por suas escolhas se não houver indivíduos livres e iguais.

Se a análise crítica de Kelsen à justificação absoluta da democracia pela teologia cristã tem por objetivo demonstrar seu verdadeiro caráter relativista, a análise crítica da tese kelseniana da justificação meramente relativista-funcional da democracia – no suposto contexto de uma reflexão filosófica livre da metafísica e da religião – é capaz de trazer à superfície o seu caráter absoluto. Em seu aspecto mais profundo, a crítica de Kelsen às tentativas teológico-cristãs de justificação da democracia só é possível caso o relativismo seja um princípio epistemológico passível de ser sustentado, antes de tudo, por aqueles que fazem dele a base de toda investigação filosófica de fundamentação. No entanto, como demonstrado, a pretensa fundamentação funcional da democracia enreda-se numa circularidade na qual, como ponto de partida e de chegada, ou seja, como valor absoluto, encontra-se o indivíduo, e não um conjunto indeterminado de valores isolados. Assim, a fundamentação da democracia, em Kelsen, se dá não em virtude de um juízo funcional, mas apenas na medida em que se toma o indivíduo como valor absoluto.

Por fim, ainda que se aceite, por hipótese, a validade do princípio epistemológico relativista retratado pela proposição de que só valores relativos são acessíveis ao conhecimento humano, a escolha dos valores a realizar por um conjunto de indivíduos atuantes na realidade política – mesmo em Kelsen – não se assenta numa prévia disponibilidade de todos os valores sociais (inclusive aqueles contraditórios entre si), ou seja, num relativismo conseqüente, mas no absoluto valor do indivíduo e nos decorrentes valores liberdade e igualdade, pressupostos de qualquer escolha responsável. Ora, é especialmente interessante perceber que, na questão da fundamentação da democracia, mesmo em Kelsen, de trás do que se mostra relativo, o absoluto espreita.

Bibliografia

KELSEN, Hans. A Democracia. Tradução de Vera Barkow e outros, São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Ensino Superior).

Notas

[1] Traduzido do original: Foundations of Democracy. In: “Ethics”, LXVI (1955-56), n.1, parte II.

[2] Cf., Kelsen, op. cit., p. 205.

[3] Cf., Kelsen, op. cit., p. 206.

[4] Cf., Kelsen, op. cit., p. 207.

[5] Cf., Kelsen, op. cit., p. 205.

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